O STF e a epifania da criminalização da “apropriação indébita fiscal”: Direito Tributário, Moral e nova Política Criminal

STF

Por Felipe Contreras Novaes 

 Gabriel de Almeida Domingues

Como amplamente divulgado nos principais jornais do país, ontem no STF (18) foi concluído o julgamento do RHC nº 163.334/SC, em que se discutiu o adequado alcance da expressão “descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”, prevista no art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/1990, para fins de definição se a conduta de deixar de recolher ICMS-próprio devidamente escriturado e declarado ao Fisco seria crime.

Por maioria, o STF considerou a conduta como crime, denominando-a como se apropriação indébita fosse, desde que ela se dê de forma contumaz e a empresa repasse no preço o custo referente ao imposto.

Dentre vários fundamentos extrajurídicos aventados, nos termos do voto do relator, Min. Luís Roberto Barroso, foi sustentada a importância da análise econômica do Direito, sob a justificativa de que a sonegação fiscal frustra o Estado de cumprir suas obrigações constitucionalmente assumidas, dando ensejo à chamada “insinceridade constitucional”.

Assim, em substituição à proposta na sessão anterior, foi fixada a seguinte tese final:

“O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º inciso II da lei 8137/1990.”

Não temos dúvidas de que o problema do devedor contumaz é uma realidade brasileira. Assim como também o é termos uma das maiores cargas tributárias considerando-se tanto os impostos diretos e indiretos.

A reprovação moral do devedor contumaz não pode se sobrepor à própria lei, pois os sentidos técnicos  das expressões “descontar” e “cobrar” estão intrinsicamente relacionadas às situações que envolvem a sujeição passiva indireta, tal como ocorre com a retenção na fonte (“descontado”) e substituição tributária (“cobrado”)[1], em que se retém tributo devido por outrem, sendo a conduta de declarar e não recolher o ICMS-próprio, portanto, atípica.

Sob o aspecto tributário, vale observar que o posicionamento até então predominante parte de uma premissa equivocada de que o contribuinte de direito do ICMS-próprio receberia, quando do faturamento dos valores devidos em razão de sua atividade, não só o que lhe é devido, mas também o que é devido ao Estado a título de tributo, ou seja, de que o contribuinte de direito “cobraria” o tributo do consumidor (contribuinte de fato), para então concluir que estes valores, se não recolhidos aos cofres públicos, estariam sendo indevidamente “retidos” pelo sujeito passivo, o que configuraria uma forma de apropriação indébita.

Ocorre que, o ICMS-próprio não é cobrado do “contribuinte de fato”, mas eventualmente repassado pelo “contribuinte de direito” como custo embutido no preço da mercadoria ou serviço vendidos, servindo seu destaque na nota fiscal tão-somente para fins de controle pelo Fisco dos créditos e débitos relativos ao regime da não-cumulatividade (embora não necessariamente destacados na nota fiscal, todos os tributos, ou sua maioria, são embutidos no preço do produto ou serviço vendidos).

Tanto é assim que, ainda que o consumidor (contribuinte de fato) não pague pelo preço, o contribuinte de direito deverá arcar com o imposto, por mais que nada tenha lhe sido repassado. E esta conclusão em nada se altera quando há o pagamento do preço, pois os valores destacados a título de imposto não serão necessariamente repassados ao Fisco, já que a existência de saldo credor acumulado, por exemplo, afasta a necessidade de qualquer repasse pelo contribuinte, o que demonstra, com todo o respeito, o equívoco da premissa adotada.

Já sob o aspecto criminal, a necessidade de segurança jurídica que orienta os cidadãos face ao poder de punição do Direito Penal, ambos os termos (“descontar” e “cobrar”) devem ser tomados na acepção técnica que tem no ramo de origem, que no caso é o Direito Tributário.

Sabe-se que o delito previsto no art. 1º da Lei nº 8.137/1990 é um crime material, que necessitava a confirmação do lançamento na esfera administrativa (o que veio a gerar a Súmula Vinculante nº 24) para conferir o elemento típico e a certeza aritmética do valor do imposto sonegado. Em que pese o crime previsto no art. 2º, inciso II da referida lei ser um crime formal, o bem jurídico por ele tutelado e os vetores que devem orientar sua interpretação são os princípios e regras do Direito Tributário e do Direito Penal. Trazer fundamentos de outras áreas jurídicas, valores morais, e questões de política criminal é um erro vetado historicamente pelo próprio Supremo: legislar positivamente. 

Desta forma, repisa-se: Não há razão jurídica para adotar uma fundamentação de uma interpretação atécnica[2], ou de ordem extrajurídica para o crime em comento.

Denota-se, desta forma, que ocorreu por parte de alguns Ministros uma farta exaltação de argumentos, notícias de jornal, fatos sociais, aspectos econômicos (Law and Economics) e um “clamor” de uma suposta política criminal que não lastreiam a interpretação do Direito Penal, que se calca única e exclusivamente na Lei para proteger um bem jurídico definido.

Em tom de prevenção do trágico futuro, eram estas as preocupações do Min. Sepúlveda Pertence em seu aditamento ao voto do HC nº 81.611-8/DF (fls. 135-136):

Tais preocupações, posto que respeitáveis, são evidentemente extra-juridicas; e a elas me permito opor outra, da mesma natureza. […]

À incriminação e à efetiva repressão penal dos crimes contra a ordem tributária, na lei vigente, não se podem atribuir inspirações éticas, na medida mesma em que se admite a extinção de sua punibilidade pela satisfação do tributo devido: a construção da sanção penal tem, assim, no contexto, o significado moralmente neutro de técnica auxiliar da arrecadação. […] Vá lá que se admita esse verdadeiro abuso da incriminação penal.”

Portanto, enquadrar a simples inadimplência do ICMS-próprio declarado como crime de apropriação indébita fere não somente o princípio da tipicidade penal (art. 5º, XXXIX, da CF/88), mas também a vedação constitucional à prisão por dívida civil (art. 5º, LXVII, da CF/88), objeto de tratado internacional cujo Brasil é signatário (art. 7º, item 7, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, internalizado ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 678/1992).

A punição do mero inadimplemento desacompanhado de qualquer ardil, tal como a fraude, omissão, prestação de informação falsa à autoridade fazendária, dentre outros, configura verdadeira tentativa de coação do devedor ao pagamento do débito fiscal. E a forma de justificar a ausência do elemento fraude, já que não prevista no art. 2º, inciso II, foi fixar a tese para aquele que deve ser punido “o devedor contumaz” que teve “dolo de se apropriar”. Conceitos não previstos na taxativa Lei nº 8.137/1990.

Nunca é demais lembrar que a inadimplência não é uma situação isolada do empresariado, mas também dos próprios Estados que, embora sejam há décadas os maiores devedores, buscam a todo custo criminalizar a mera inadimplência unicamente por parte dos contribuintes.

E mais: não satisfeitos com a última moratória que estendeu o prazo de quitação dos precatórios para 2024, agora os Estados buscam dar mais um calote, conforme PEC nº 95/2019 que pretende estabelecer nova prorrogação para 2028, em que pese tal prazo já tenha sido considerado como improrrogável pelo STF.

Como bem levantado pelo Min. Gilmar Mendes ao relembrar caso narrado pelo Min. Sepúlveda Pertence, grande parte destes créditos são oriundos da chamada “inconstitucionalidade útil”, ou seja, cientes de que apenas pequena parte dos contribuintes irá questionar judicialmente a exação, os Estados cobram tributos sabidamente indevidos, sem que isso gere qualquer responsabilidade aos agentes públicos, à exemplo do crime de excesso de exação, injustamente tido como letra morta pelo Ministério Público.

Por fim, se o intuito do STF foi criar balizas para a interpretação do referido julgado, acreditamos que há claro elemento de insegurança jurídica em utilizar conceitos abstratos como “devedor contumaz”, ou ainda de difícil verificação, como ocorre no caso do “dolo de apropriação”, reiterando-se ser quase impossível determinar a psique dos responsáveis em cada empresa que possuem o desejo de lesar o Fisco.

Se não bastasse o empresariado sofrer diariamente com a falta de clareza e complexidade da legislação fiscal, em especial a do ICMS, cuja insegurança jurídica é um dos principais fatores responsáveis por grande parte da autuações fiscais, em que não somente são cobrados os impostos corrigidos, mas também atualizados com elevadíssimos juros e multas, muitas vezes superiores ao próprio valor do tributo.

Agora pretende-se interpretar de forma elástica, como disse décadas atrás o Min. Sepúlveda Pertence, o tipo penal do art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/1990, como forma de combater esta figura incerta, que é o devedor contumaz, tornando crime aquilo que, em verdade, é uma mera inadimplência de tributo indireto.


[1] Além de outros casos isolados em que o contribuinte efetivamente cobra tributo do particular, como ocorre com a contribuição sobre iluminação pública (CIP), IOF sobre crédito rotativo (cheque-especial) e a extinta CPMF, hipóteses muito bem levantadas pelo advogado Igor Mauler Santiago em sua sustentação oral.

[2] Como bem sustentou o Min. Marco Aurélio, embora não caiba um discurso moral, estatístico ou de insuficiência de caixa (econômico), “deu-se (STJ) interpretação elástica ao preceito a encerrar tipo”.

FONTE: Jota

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Felipe Contreras Novaes é conselheiro do Conselho Superior de Direito da FecomercioSP e atua como advogado no setor Tributário do escritório Honda, Teixeira, Araujo, Rocha Advogados.